sexta-feira, 22 de abril de 2011

Alegria Breve

Pedro Salgueiro

O velho Arledo acordou com estranhas sensações de alegria. Alegria esta vinda após mais de trinta anos de tristeza, desde as primeiras dores reumáticas, as primeiras prisões de ventre e os primeiros afastamentos dos filhos recém-casados.

O lundu eterno do velho sequer foi notado, pois todos acreditavam ser característica intrínseca dos velhos, o que não aconteceu com sua alegria repentina e tardia, depois de ter visto desfilar em sua porta um enterro e passado a noite em pesadelos.

O renascer altivo e misterioso de um avô já quase esquecido da família foi motivo de comentários tristes de parentes e amigos. Para eles, ali começava o fim; ali iniciavam as vergonhas dos filhos, netos e noras; ali principiava um período de mais trabalho físico e mental para todos; era a caduquice do ex-eterno patriarca da familia.

Às doze palavras diárias foram acrescidas mais cento e vinte outras. Algumas totalmente fora de moda. Estas quem entendia era somente o filho mais velho e a comadre Verônica, quase da mesma idade. Outras palavras eram extremamete jovens, aprendidas na televisão, dos bonecos e padarias. Já estas, somente quem entendia era o filho mais novo, os sobrinhos e netos, também, quase todos da mesma idade.

Roupas velhan tiveram que ser engomadas e algumas novas, compradas; uma alpercata de rabicho foi encomendada para as visitas e passeios do velho-novo. Até antigos pacotinhos de brilhantina voltaram às gavetas da cômoda.

Deu para reverberar pela casa palavras ocas, entrecortadas por discursos meio filosóficos, pedaços de músicas e conversas antigas.

- Arre Aniceto, solta essa espingarda. “...Aos pés da Santa Cruz, você se ajoelhou, em nome de Jesus um grande amor você jurou...”

Os olhares se desviavam dos seus e se cruzavam mais na frente, depois encontravam-se no chão, perdidos entre lentos balançares de cabeça.

Certa manhã, ao acordar de sonhos bem tranquilos, veio uma vontade louca de soltar papagaio, brincadeira hoje quase esquecida. Foi um trabalho árduo convencer os dois sobrinhos e os três netos a irem para a rua brincar com seu Arledo, que ameaçava chorar se não arranjasse companheiros. Trabalho maior foi convencê-los, às três da tarde, a almoçar, dada a enorme quantidade de pipas do céu da rua.

Algumas paixões escondidas pela família, as brincadeiras de criança, as gargalhadas sem motivos só foram interrompidas por uma crise aguda de reumatismo, seguida de morte. Não sem antes respingar frases que saiam de sua boca como se tivessem sido usadas pela vida toda, limpas, sem titubeios, firmes como se fossem ditames filosóficos incontestáveis. A essas frases, que assustaram os parentes, eram intercaladas gargalhadas histéricas e pedaços de conversas e músicas de antigamente.

… Uns com o olhão grande e o outro pequenininho; outros com um olhinho pequeno e o outro grandão; e eu com os meus dois olhões grandões...”Albertina não me faça sofrer, dom Rafael vai dar bronca e vai ser contra o direito de nascer.”

Tirante o penico de ágata do velho que, em noites de julho, se arrasta pela casa e algumas batidas de porta em noites calmas e sem vento, nada restou dele, a não ser suas últimas palavras, que escorregavam de sua boca já fechada, como se fossem um assobio do vento nas frestas das telhas.

- … Ah, velhice, essa fábrica de monstros... - E finou-se.


Pedro Salgueiro (1964, Tamboril – CE). Autor de vários livros, tais como O Peso do Morto (contos). - São Paulo Ed. Giordano. 1995. Em 1996 lançou O Espantalho (Contos). Coleção Forteza. Col. Alagadiço Novo. Brincar com armas, outro livro de contos veio em 2000, através da editora Topbooks, RJ. Em 2006, fo a vez de Dos Valores do Inimigo(crônicas), o qual faz parte da Coleção Literatura no vestibular. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza Voadora (crônicas) em 2007. Imprece.Fortaleza. … e por aí vai, porque como diz Ana Miranda no prefácio de Fortaleza Voadora, "Pedro é Pedro, e nos leva por um mundo todo seu, feito de lembranças de circos, charlatões de rua, quixotes de subúrbio, vampiros urbanos, vilas, bairros, dessa “nossa loura desmiolada pelo sol” (a cidade de Fortaleza).

Um comentário:

  1. muito bem escrito, uma leitura de enfiada - parei nem pra respirar! parabéns ao pedro salgueiro.

    besos e obrigada, cissa, pelo presente.

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