sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Atração turística

Cissa de Oliveira


Raimundo Rufino passava horas dizendo bobagens assoviadas. Trocava o som do “s” , do “c” e do “z” pelo “f” com a mesma inconsciência com que opinava sobre qualquer assunto.

“Grafas a Deus o meu nome é Raimundo Rufino Adro Carqueja. Nome de homem valente, decidido, macho. E meu irmão Zeferino Fauvinin, emendando o mesmo fobrenome, idem. Logo fe vê que disfernimento e constânfia os meus pais poffuíam. Coifa esquifita em homem é nome dofinho, que nem que foffe fruta. Vitor, Giovane, Lucas, Tales. Desconjuro, e niffo declaro grande efpanto: uma coifa é nome de mulher, e outra, bem diverfa é nome de homem. E não foffe affim? Aparefiam logo as intolerânfias.”

Intolerância quanto a homem de brinco. Ah, que com isso ele não concordava, não tolerava e não absolvia. O caso é que se ele tolerava ou não, ou se absolvia, ninguém dava a mínima, aliás, o que davam era corda no juizo mole dele pra que falasse, provocando risadas. - E aí Raimundo, tu avistou algum homem de brinco hoje? Não, ele não tinha avistado, da última vez tinha sido no domingo. “De calfa moleton da fininha, chinelo e brinquin, e mais, era um homem affim, mais véio de que eu! Fe ao menos foffe um artista, mofo... Com eles não tem problema, né? Aquilo era marmota de marca maior, que eu nem que rico foffe, coifa que não quero, nunca ia botar brinquin!”.

E porque tu não quer ser rico? Instigavam. Rico todo mundo quer matar, principalmente as mulheres, declarou. “Fe um dia eu ganhar na loteria...” – e tu joga? - “Jogo, por vífio somente. Fim, mas ganhando na loteria, fe iffo tiver que fer, compro logo uma fafenda; arranjo um monte de mulher muito das bonitonas, affim que nem faz jogador de futebol, e ponho todas lá, pra ficarem andando pra lá e pra cá”.

Tem cabimento ironia nesse destrambelhado? Um pavoroso que até a própria sombra se esconde dele, não vai tratar mulher feito vaca no pasto. Ainda hoje faço mandinga da braba que homem nulo de caráter tem de aprender é nos trancos! Injuriada, mostrava seu descontentamento a dona Bárbara, “A Poderosa”, assim apelidada por ser legítima jogadora de praga. Ei, que até mesmo quem não acreditava nessas coisas, dela não desdenhava.

Mormaço no dia seguinte. Nada de vento, de pássaro, de barulhada nas árvores. Dia paraaado! O capim, mais comportado do que tapete de quarto. Raimundo Rufino veio apontando por ali mas ei! - como explicar o que não se entende? - que o capim começou a fazer redemoinhos, redemoinhos, redemoinhos -, redemoinhos convergindo para o lado de onde ele vinha, montado no costumeiro cavalo. O que era aquilo, o que era? “Valei-me Noffa Fenhora!”. O cavalo já sobre duas patas, e ele, medo impresso do dedão do pé ao último fio de cabelo, se agarrou nas crinas do animal. As pessoas, a bem da verdade, só na risada. Então aquele era o valentão da cidade? Num repente, parecia boneco crispado. O cavalo, que por certo era mais sensível do que ele se libertou e saiu em disparada. Raimundo Rufino ficou ali mesmo, entrevado. Tinha virado estátua. Espanto. Espantalho. Referência na praça da cidade.

O primeiro aparato que recebeu foi um vistoso par de brincos; o segundo, o apelido de Carmen Miranda.

Cissa de Oliveira

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Três horas e meia e uma calcinha preta

Cissa de Oliveira



A notícia veio pelo correio, entre outras tantas na mesma carta. Numa frase só, assim, como se nem tivesse importância. Finou-se Luiz Antonio Santos, no dia 17 de janeiro. Morte de passarinho. Instantânea. Alguém pode com uma coisa dessas? Asseguro que não. Não nego, chorei um rio maior do que quando ele me deixou pra casar com a moça da outra cidade.

A carta reli, esmiucei diversas vezes sobre a mesa da cozinha, entre uma e outra ocupação. Depois, mãos úmidas de enxugar prato, deixei-as bem deixadas sob o queixo, cruzadas. Má notícia, má verdade. Há tempos que um do outro a gente era coisa fortuita, fumaça rápida, passagem. Mas agora, morto completo, Luiz Antonio, tu parece é fumaça de casinha longe, crescendo, crescendo e crescendo na paisagem. Devia era de minguar de vez, junto com as lembranças todas. Mas qual o quê, então pensei em ficar desavergonhada dos nossos acontecidos, contar tudo em verso, embonitar os escondidos, alardear do calor que tu, só de me olhar, provocava por debaixo das saias, do filho dos nossos reencontros, que eu registrei só no clandestino, assim, como se fosse bebida falsificada. Ao certo, eu devia era botar tudo num livro, Luiz Antonio, num romance. Vingancinha da boa contra aquela que passava a Páscoa, o Natal, o Ano Novo e todos os aniversários contigo. Água com açúcar de cinema, mas cinema. Sessão da tarde. Propaganda de margarina no café da manhã. Desde menina eu tive jeito pras coisas do lápis e do papel. Lembra que eu escrevia cartas pra quem não sabia escrever? Talvez eu deva aproveitar esta ocasião e dizer que quando a notícia era muito triste, desaforada ou dolorida eu inventava um brilho, consertava um tanto. De feio, naquele tempo, bastava a realidade, a pobreza, a sem gracez dos dias.

Ninguém consertou a má notícia da tua morte, Luiz Antonio, por isso eu caraminholei e chorei bem umas três horas e meia. Foi muito? Foi pouco? Depois, enterrei você Luiz Antonio, enterrei pra sempre, não do jeito que eu mesma me prometia ao final de cada uma nas nossas despedidas. Mas foi o nosso filho chegar, eu te desenterrei por instantes. Desenterrei, ressuscitei. Contei teu nome, sobrenome, procedência. Agora ele já sabe que tem pai conhecido. Defunto, mas conhecido. E como todo defunto merece um luto, Luiz Antonio, decidi: hoje a noite eu vou usar aquela calcinha preta e sexy, presente teu. Ela fica meio escondida nas partes, é sabido, mas tudo bem, porque assim como tu dizia sobre as coisas da nossa vida secreta, o que vale é a intenção.

Cissa de Oliveira