quinta-feira, 23 de junho de 2011

No meio dessa história...

Cissa de Oliveira


É difícil acreditar que Carlos Drummond de Andrade tenha sido expulso da escola sob o pretexto de “insubordinação mental”. Pois isso aconteceu. Insubordinação mental... Seria isto alguma falta de sinônimo para o comportamento de um jovem em fase escolar? Talvez Drummond tenha feito referência a esse lamentável engano quando escreveu: “ … e de tudo fica um pouco. / Oh, abre os vidros de loção/ e abafa / o insuportável mau cheiro da memória...”.

Drummond colaborou com diversos espaços literários, notadamente para o Jornal do Brasil, onde permaneceu por 64 anos, e foi, a seu tempo, um poeta influente na nossa literatura. Dono de extensa obra literária, viu seu poema “No meio do caminho” (1928) se transformr em escândalo literário. Aparentemente o autor não se abateu, e passados trinta e nove, quarenta anos, publicou "Uma pedra no meio do caminho - Biografia de um poema", que nada mais era do que uma resposta, se é que se pode chamar assim, um apanhado de críticas e matérias resultantes do seu poema escândalo ao longo dos anos.

É inegável que poemas modernistas eram criticados, ridicularizados, renegados enquanto literatura, mas o tempo, senhor de todas as engrenagens, mostrou que o mais completo modernista, havia nascido para brilhar. E mais, ao escrever que “tinha” uma pedra no meio do caminho – será que a pedra não era ele mesmo, no sapato dos conservadores? - é... porque tinha uma pedra e pronto.

Quem dera, os insubordinados das escolas de agora soubessem ler, quer dizer, ler de verdade. Poetas em potencial? Nesse caso é esperar, afinal, a história e também a vida têm mostrado que não se deve ter desesperanças. Quem garante que não há ao menos um Drummond querendo emergir no meio desse celeiro de insubordinação em que se transformou a Educacão no Brasil?

E se assim é, cabe citar mais uma de Drummond: “Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida”.

Sim, e essa verdade está "estampada" a seguir, com a beleza intrincada nas leituras do poema escândalo, em diversos idiomas. Ta bom assim?



Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental".

Cissa de Oliveira

quarta-feira, 22 de junho de 2011

E já que a época é de quadrilha

... essa é do Grupo de Xaxado Pisada do Sertão (Paraíba)



A origem do xaxado é ligada ao universo dos cangaceiros. Segundo Câmara Cascudo (dicionário de folclore brasileiro), a própria palavra xa-xa-do é uma onomatopéia do xá-xá-xá produzido pelas alpercatas dos cangaceiros arrastadas no chão. Um dos elementos que deram origem ao xaxado foi o parraxaxá, canto utilizado pelos cangaceiros, que desafiavam os policiais militares.
"... eu não respeito poliça,
soldado nunca foi gente,
espero morrer de velho
dando carreira em tenente..."


A letra do xaxado é caracteristicamente agressiva, contundente e satírica. Um xaxado lírico é artificialidade irresponsável. A música é simples e contagiante como toda melodia feita para a memorização inconsciente, constando quadra e refrão repetidos em uníssono pelo bando.

A dança do xaxado é feita em fila indiana, em círculo, com os pés executando movimentos laterais, arrastando as alpercatas no chão e fazendo coreografias com os fuzis. O xaxado surgiu na primeira metade do século XX, na caatinga do alto sertão pernambucano. Inicialmente no xaxado só participavam homens, e a participação de mulheres se deu por meio da presença de Maria Bonita e outras mulheres no Bando de Lampião. O xaxado atingiu grande popularidade nas décadas de 40 e 50, por meio do rádio e de cantores como Luiz Gonzaga e Marinês.

Informações de acordo com o TCC de Humberto Colácio Carneiro (graduação em música/violão), onde o autor analisa a presença de gêneros da música nordestina na obra para violão solo de Paulo Bellinati.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Na cauda da mula-sem-cabeça


Claudia Villela de Andrade

O colégio, onde eu estudava, tinha um enorme corredor lustrado de vermelho.

Agora o vejo pequeno. O tamanho das coisas se apresenta conforme o nosso próprio tamanho. Aquele corredor do medo, hoje não é nada. Apenas repousa no canto da minha cabeça curtida já com esse tipo de trauma.

Quando pequena, ele era importantíssimo. Ali, eu ficava em pé de castigo, esperando a diretora para a bronca final. A maioria das vezes, sem justa causa. Ele, então, se tornava o objeto da minha tortura, porque nunca ninguém era tão injustiçada quanto uma criança levada.

Ali, de pé, minhas mãos esfregavam-se uma na outra numa eterna aflição. As idéias e os pensamentos tinham que ser rápidos nas desculpas esfarrapadas.

Quando a marcação do passo de salto alto se iniciava no final do corredor, o suor começava a escorrer e o arrepio da barriga era inevitável. Fechava os olhos, respirava fundo, engolia saliva até a boca secar de vez. E, então, ele parava na minha frente e o carrasco descarregava seu chicote de palavras moralistas, sem amor. A cada chibatada, apertava a língua para não ser mal educada e piorar minha situação.Se o aperto dos lábios era assim, o da alma era pior. Fogo e sangue encurralados no cuspe da infância.

Diacho de corredor do inferno! Ouvia o capeta rindo de mim. Era o corredor da morte. O que me carregava no lombo da mula-sem-cabeça e em cuja cauda havia uma enorme Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. Será que ela me ouvia?

O pior ainda não era isso. O terrível era quando os passos eram largos, barulhentos, rápidos e ríspidos. Os passos da minha tia que também era freira no colégio e que muitas vezes passava por ali. Eram dois chicotes descarregados de uma vez só, o da mestra e o da tia, sendo que o desta última estalava também um beliscão (tudo entre os dentes).

Assim era o encontro da minha alma com a máquina que moía a minha carne, pois dali ela saía para o telefone e, em casa, o couro cantava de novo.

Às vezes acho que, à noite quando durmo, minh’alma vagueia por esses corredores em que vivi. Sempre passo novamente por um mesmo lugar, agora com mais serenidade e maturidade para entender os quadros pendurados nas paredes e as pegadas deixadas no chão. Sinto, então, vontade de rir de situações vividas, de frases ditas ou pensadas, de pessoas a quem a gente esquece e lembra só na hora certa da memória.

Corredores são de mão dupla. Vão e voltam. Como a gente.

Este conto faz parte do livro "Prosas do Ninho" (Ed. muiraquitã, 2008), vencedor do Prêmios Literários Cidade de Manaus, edição 2007, na categoria Livro de Memórias.


Cláudia Helena Caldas Villela de Andrade é carioca, nascida em outubro de 1956, professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o 70º lugar pela Academia Brasileira de Letras co Concurso de redação para Professores de 2001, entre 6032 textos inscritos, fazendo parte da coletânea: Devemos ver com olhos livres (frase de Oswald de Andrade). Fundou o Grupo Virtual Pax Poesis encantada, e publicou dois e-books na internet, um deles de literatura infantil Brincadeira de Gente Grande. Organizou e participou da antologia poética do grupo DiVersos (Ed Scortecci, 2002), e da antologia de prosas Com licença da palavra (Ed Scortecci, 2003). Publicou Prosas do Ninho (Manaus, d Muiraquitã, 2008), vencedor do II Prêmios Cidade de Manaus, edição 2007, na categoria “Livro de Memórias”.
Além disso, Claudinha é uma grande amiga; e por mais que ainda não nos conheçamos pessoalmente, depois de mais de dez anos convivendo no grupo Pax Poesis Encantada, uma família literária, é como se nos víssemos desde sempre.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Dois Poemas de Ana Suzuki

Serenidade


Ana Suzuki

Virei água morna,
que se recusa a ferver
e tampouco a esfriar.
E quero manter-me assim,
sem arrepios de gelo
nem tremores de fervura.

Virei rio de planície,
sem securas na vazante
ou desatinos na enchente.
Já não corro, só deslizo.
Entre lírios e serpentes,
eu deslizo.

In Bodas de Coral
© Ana Suzuki
Campinas (SP) – Brasil

Você me dói


Você me dói
Não sei em que parte do meu subconsciente,
em que sala, caverna ou porão,
você me dói.
Não sei se por fora,
na pele que treme,
se por dentro,
nas vísceras que sustentam,
se lá longe,
nos ossos do nosso futuro...
Em alguma parte do meu ser
e do seu
em algum lugar do céu
ou do inferno,
do macro ou do microcosmo,
em algum lugar feliz e desesperado,
que não sei onde,
você me dói.

Ana Suzuki

Ana por ela mesma:

Resido em Campinas, no estado de São Paulo e pertenço, com muita honra, à Academia Campinense de Letras. Sou brasileira, sem um pingo de sangue japonês, mas casada, desde 1972, com Tadao Suzuki, de Fukushima-Ken, Japão; e é daí que vem meu nome de escritora. Publiquei, ao todo, dezesseis livros impressos; romances e infanto-juvenis, todos eles patrocinados por grandes editoras. Todavia, se antigamente elas levavam um ano para avaliar a obra e outro tanto para publicar, imagino que esse tempo se tenha dilatado muito, pois, hoje em dia, recebem centenas e centenas de originais por mês. Há dez anos sou fascinada pela internet, onde tenho cerca de trinta e-books publicados. Habituei-me à rapidez e foi isso o que me ofereceu a Editora Baraúna, com seus preços módicos e publicação sob demanda, isto é, livros impressos em qualquer quantidade, de acordo com a procura, sem risco de encalhe ou edição esgotada. Espero que o leitor fique tão contente como estou eu.


Ana Suzuki e Cissa, num evento na Academia Campinense de Letras.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Prêmios Literários Cidade de Manaus 2011


Ao todo, são 20 categorias, sendo 14 em nível nacional e outras seis para autores residentes em Manaus há pelo menos cinco anos.

As inscrições vão até o dia 20 de junho.

Podem concorrer aos prêmios nacionais os livros inéditos nas categorias romance ou novela, contos, poesia, crônicas, teatro adulto, teatro infantil, memória, jornalismo literário, literatura infantil, ensaio socioeconômico ou histórico, além de ensaios sobre tradições populares (folclore), literatura e cinema. Já os prêmios regionais serão distribuídos ao melhor romance ou novela, conto, livro de poesia ou memória, literatura infantil e ensaio sobre tradições populares. A premiação é de R$ 5 mil para os vencedores da versão nacional e R$ 3 mil para os ganhadores da versão regional.

O concurso Prêmios Literários Cidade de Manaus foi lançado pela primeira vez em 2006 e, desde então, 55 obras foram premiadas. Devido a falta de procura, as categorias de ensaio de dança e de artes plásticas foram excluídas do concurso e houve a necessidade de duplicar outras para aumentar o incentivo aos autores locais.

As inscrições devem ser feitas até as 17h do dia 20 de junho, na sede do Concultura, na Avenida André Araújo, 2767, no Aleixo, zona centro-sul. Os trabalhos devem ser entregues em três vias digitadas e encadernadas em formato A4, com impressão apenas em uma das faces do papel e, no mínimo, 50 páginas.

Os candidatos também devem anexar um envelope lacrado contendo uma folha de identificação do trabalho com nome, bibliografia, fotografia do autor, além de dados de contato e documentação.

Os trabalhos podem ser enviados pelo correio, até a data limite da inscrição. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone do conselho: (92) 3236-9387.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

James Brown - I Feel Good (From "Legends of Rock 'n' Roll" DVD)



O Apelo de James Brown - Short Story para Cissa de Oliveira


José António Gonçalves

O despertador era dotado de um rádio. O seu toque correspondia ao abrir da estação escolhida. Seis da manhã, indicava o relógio. Ainda ensonada estremeceu com o som que, de repente, tomou posse da casa: era James Brown a gritar «I Feel Good». Esfregou os olhos e esticou os dedos dos pés. Uma onda de electricidade tomou-lhe conta do corpo. O lençol parecia-lhe uma prisão, manietando-lhe os movimentos. Saltou da cama para o tapete num ápice e deixou-se levar pelo ritmo, um funky dos anos sessenta que apontava para as nuvens, mas como ali só tinha um tecto creme, enquanto balançava os braços e as pernas, com o tronco em rotação proporcionada, foi lá mesmo que fixou os olhos. Não sabia, inexplicavelmente, se era o quarto que girava à sua volta, ou se era a vontade de dançar que a conduzia nos passos. Apesar de ter muita coisa para fazer, começou pelo duche, ajeitou o pensamento, tomou o pequeno almoço e completou a sua «toilete», surpreendida pela velocidade com que completava as coisas que, antes, demoravam uma eternidade. «I feel good, so good...», continuava o James Brown a trovoar-lhe na cabeça, sentindo-se já desperta para enfrentar o dia. A vida agitava-se-lhe, involuntariamente, pela força da voz do cantor, pela sua junção aos saxofones, às guitarras, ao órgão «hammond», ou tão somente porque precisava de um pretexto para alterar o significado do seu «modus vivendi», a partir de um apelo. Relaxou então, sentou-se no sofá confortável da sala e, correspondendo ao desimporte que tomava conta de si, antes de voltar a adormecer, estendeu-se, agarrada a uma almofada, e desejou não raciocinar sobre o que quer que fosse, em ser apenas jovem, não ter a obrigação de cumprir com os seus deveres de bióloga, de mãe, de professora, de pesquisadora, de mulher, de pau para toda a obra. Até de bom grado abandonava a sua condição de poeta para entrar noutro universo irreal. Via-se correndo por uma praia de areia fina, branca, molhando os pés na água azul do mar, como se não tivesse um passado, um presente, um futuro. Um destino. O seu imaginário divagava pelo usufruto das paixões, pelo prazer e deleite na feitura de um suco de manga para refrescar o seu amor, retornando aos desejos simples de uma existência que se foi complicando só porque optara pela disciplina, pelo trabalho, pelo ram-ram da cidadania, pela recusa do sonho, pela sombra de um quotidiano interdito ao sol e à magia do romantismo. Voltou a acordar, desconhecendo a que contas andava, com o toque impertinente do telefone. Do outro lado perguntavam-lhe porque estava atrasada aos seus compromissos. «Estava doente, sentia-se mal?», inquiria alguém, do outro lado da linha. Ia - algo fantástico se entretinha com os seus neurónios - arranjar uma desculpa. Mas escutou-se dizendo a verdade, traduzindo os versos entoados por James Brown : «eu sinto-me bem, muito bem... Por isso hoje não posso estar aí!». E decidiu não sair de casa. Optara por ocupar-se com um caderninho cor-de-rosa, onde se habituara a agrupar uns poemas. E escreveu, sorrindo no usufruto da sua liberdade de pessoa resoluta e madura, na página em branco: «série JAG - 50».

José António Gonçalves

14.10.04
Publicado na Revista MARGEM - Câmara Municipaldo Funchal - Detartamento de Cultura - Ilha da Madeira - Organização: António Fournier - Maio 2008.


Parabéns JAG
O amigo José António Gonçalves faria aniversário hoje. Falecido em 29.03.2005, deixou um grande vazio, entre os seus e entre todos nós que o conhecíamos, mesmo que apenas através da poesia.
JAG, como era conhecido, foi escritor e grande divulgador na área do Jornalismo e da Literatura. Revelou-se aos 10 anos, e ao partir deixou quase duas dezenas de livros, fora as antologias. Jornalista profissional, presidente e co-fundador da Associação de Escritores da Madeira (AEM), fundou e dirigiu várias coleções literárias, além de eventos literários e musicais, especialmente no Funchal, Ilha da Madeira. No ano em que faleceu publicava diariamente, via internet "A Arte de Delfos" que veio a substituir a “A Poesia dos Calendários” onde divulgava escritores de diversas épocas. O importante é que fossem bons, dizia. Com isso é possível de se imaginar a minha alegria ao receber o texto acima. Uma grande homenagem, digna de se partilhar.

É a Rosa...

"... e se eu passar o dia dos namorados sem namorado?
Eu também não passo o dia do índio com um índio,
nem o dia da árvore com uma árvore.
Muito menos o dia de finados com um defunto!..."

Rosa Pena



Rosa Pena, escritora do Rio de Janeiro. Amiga e companheira desde que passei a participar do grupo Pax Poesis Encantada, pela internet. Já partilhamos publicações, prefácios, bienais e muito mais. Rosa é assim, diz o que pensa, e escreve muito bem! Além de antologias, publicou PreTextos (2004), Ui! (2004) e Tarja Branca (2010).

domingo, 12 de junho de 2011

Nando Reis - Sou Dela


Nando Reis, em homenagem ao "Dia dos Namorados"

... Dizer que não vivo sem ele,
bobagem,
no amor somos um só.
Ele é meu e eu sou dele
como a lua é dos poetas...

Cissa de Oliveira

do meu poema "Ele" in Apenas Poesia

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

Thiago de Mello

A Carlos Heitor Cony


Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964



Thiago de Mello (Barreirinha, Amazonas, 1926) é o nome literário de Amadeu Thiago de Mello. No Amazonas, é um dos poetas mais influentes e respeitados, reconhecido como um ícone da literatura regional. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura, exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e companheiro por toda a vida. Um traduziu a obra do outro e Neruda escreveu ensaios sobre o amigo. Seu poema mais conhecido é Os Estatutos do Homem, onde o poeta amazonense chama a atenção do leitor para os valores simples da natureza humana em artigos de plástica formal. Seu livro Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida rendeu-lhe, em 1975, ainda durante o regime militar, prêmio concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte e tornou-o conhecido internacionalmente como um intelectual engajado na luta pelos Direitos Humanos.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Essa eu queria ter escrito



Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 5 de junho de 2011

Uma dupla muito interessante

Cissa de Oliveira


A primeira vez que eu ouvi a Maria Gadú foi num programa de televisão. Ali, uma cantora dona de um tipo de voz que dispensa todos os instrumentos. Santo Deus dos ouvintes já pouco crentes, o que era aquilo?

Há pouco eu soube da parceria dela com o Caetano Veloso, e isso me alegrou profundamente. O Caetano merece. Vejam que eu nem disse “a Maria Gadú merece”. É que ele já provou que a que veio faz tempo. Artista e pessoa extradinária, encontrará em Maria Gadú mais do que uma companheira na música; ela será a água renovadora da poesia dele. Fôlego pra isso e muito mais a moça tem. A diferença de idade ou de gerações não quer dizer nada, tanto porque ela compõe desde os 10 anos, quanto porque é dona de uma maturidade que não dá para esconder. O público tem instinto para essas coisas, e pelo jeito adorou, haja vista as manifestações de carinho que a dupla tem recebido.

Recentemente o Caetano disse "…da primeira vez que a vi, ela parecia um moleque de favela 'movie'; um garotinho com voz de princesa...”. Pois é, dentre o joio há muito trigo; por isso de vez em quando somos brindados com o surgimento de artistas da maior qualidade. Artistas que não precisam ser vendidos, promovidos, enlatados, engarrafados, sei lá que diabo a quatro, apenas para vender, vender.

Caetano Veloso e Maria Gadú, uma dupla muito interessante. Nela, ambos saem ganhando, mas quem ganha mesmo, no final, somos nós, apreciadores da boa música brasileira, muitos já saudosos de uma Alegria, alegria que, há tempos, alcançávamos só pelo retrovisor.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Campinas, berço de fraudes

Nassim pode?


Cissa de Oliveira


Quanto mais eu leio sobre o escândalo da Prefeitura de Campinas, mais surpresa eu fico. Infelizmente temos presenciado cada vez mais a nossa política se transformar em caso de polícia, ou seria de guerra? Guerra do ganha-perde. Eles ganham, o povo perde. Já dizia Bertold Brecht, a guerra destrói os fracos; mas a paz faz o mesmo. Campinas parecia em paz. E agora, onde o equilíbrio?

A primeira dama de Campinas, Rosely Nassim Jorge Santos, foi acusada de ser a chefe do “esquema”, e aí é que eu comprovo o sentido da segunda parte da frase de Brecht. Para se livrar da prisão a primeira dama “saiu na frente” e conseguiu um habeas corpus. É sabido que essa manobra a livrou, juntamente com o prefeito, de ser presa com outros “operadores” suspeitos de articularem para atapalhar ações do Grupo de Combate Especial ao Crime Organizado (Gaeco).

A Sanasa de Campinas foi apontada pela promotoria como berço de fraudes disseminadas por todo o país. Isso, mais do que escandaloso, é triste, ainda mais no momento da descoberta. No ano passado teriam fraudado licitações de 11 prefeituras, e no governo de Tocantins. Passadas as prisões, a primeira dama reapareceu na cena, apresentando-se ao Gaeco. Teoricamente estaria colaborando com as investigações, muito embora tenha permanecido em silêncio diante de 41 questionamentos.
A primeira dama de Campinas: siêncio diante de 41 questionamentos.

Tivesse essa primeira dama de Campinas lido o poema “Os estatutos do Homem”*, saberia que no seu Artigo V está descrito: “... nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio/ nem a armadura de palavras./ O homem se sentará à mesa / com seu olhar limpo / porque a verdade passará a ser servida / antes da sobremesa...”. E assim, como nomear o que aconteceu? Dissimulação, encenação, cinismo, abuso de poder? E mais, Nassim pode? Seja lá o que for, nessa mesma ocasião a primeira dama pediu exoneração.

O prefeito imediatamente classificou o pedido de exoneração da mulher como uma atitude de desapego. A essa altura resta perguntar, como é que a gente ri, num texto? Mas tem que ser riso do histérico, que essa coisa toda tomou contornos de loucura, ou seria de circo? As cadeiras estão empoeiradas. Há crostas e crostas de poeira, poeira da grossa, Dr. Hélio, grudenta, dessas onde se grudam germes de todos os tipos e poder de malefício. O risco de infecção generalizada já foi detectado, e você, prefeito, se mostrou uma decepção para todos aqueles que o elegeram.

Prefeito, nassim num podia, e você bem sabia...

Cissa de Oliveira

*Os Estatutos do Homem. Um poema de Thiago de Mello.

Zélia Duncan - Me Revelar

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Romancistas de Campinas

Após uma pequena cirurgia,ando em franca recuperação. Aproveitei para desempoeirar umas coisas, arrumar outras, e até mesmo reencontrar algumas muito importantes. Assim, publico aqui, escritos a mim dedicados por amigos queridos; é uma forma de agradecer novamente, registrar e até mesmo guardar.

Abaixo, um comentário do escritor campineiro Rubem Costa, da Academia Campinense de Letras, publicado no jornal Correio Popular, em 2009.

Cissa de Oliveira

Romancistas de Campinas

Rubem Costa
costa.rubem@uol.com.br

Cissa de Oliveira é pseudônimo literário da bióloga Maria Sileuda Moreira de Oliveira, doutora em genética e biologia molecular que, de quando em quando, escapa da vereda pragmática da ciência para descortinar no abstrato de seu mundo encantado a paisagem onírica da vida.

Para contemplar a essência desse universo de sonhos, basta ler o programa de livros que tem atualmente em preparo: A Música do Mar, Acordando as Palavras, Versos que eu Pensei e Se Há Chuva ou se Faz Sol. Todavia, não é dos títulos arregimentados que pretendo me ocupar hoje, mas tão somente da publicação recente que me chega às mãos: O Cavalinho Azul.
Um livro que, a começar da apresentação gráfica, traz em si mesmo enraizada uma mensagem dialética, a força da contradição entre o material e o espiritual. Eis que, lançado em formato eletrônico, dispondo apenas de quarenta e uma páginas, aparentemente é um livro de pequeno porte. Em número de folhas, magrinho. E aí se consuma o conflito, porque longe de ser um mero livrinho, revela nas reduzidas folhas uma grande obra que, podendo ser leitura para criança, se destina à reflexão do homem, como a própria autora põe em relevo na dedicatória — “Para todas as crianças e também para os adultos que não perderam a capacidade de sonhar”.

Como se vê, um desiderato que se inscreve na mesma linha de O Pequeno Príncipe, mas, todavia não o imita, não repete, nem induz a confusão com a saga de Saint-Exupery. Tem rota própria. Nele se projeta o ser multifacetário em sua manifestação onírica, buscando retirar do vazio o sentido vivencial do existir. Uma busca que faz lembrar a máxima de Lavoisier que — acertando quando disse que da natureza nada se perde, tudo se transforma — errou ao afirmar que nada se cria. Cria-se, sim senhores, tira-se do nada porque há um momento em que a mente, parodiando o Gênesis, copia a Deus: cria o poeta na concepção do belo, criam os músicos e todos artistas quando buscam na realidade dos sonhos a essência do existir. Podem não plantar materialmente uma árvore, porém conseguem dela a percepção da eternidade e são capazes de traduzir pela captação do mistério — na luminosidade que o sol projeta e no claro e escuro que a lua abençoa — a beleza escondida que nossos olhos não enxergam e pela qual, nós outros, os botocudos, passamos indiferentes sem perceber a grandeza da concepção. Assim, diante do verbo criar é necessário ter em conta a semântica do termo. De origem latina, significa originariamente concretizar, tirar do nada. É a manifestação da essência em forma de existência. Só viceja na seara dos privilegiados que percebem, veem e escutam, tracejando imagens, combinando cores, sons e ideias para despertar uma realidade que, imperceptível ao comum dos homens, preexiste na consciência e se projeta para a eternidade.

Em Cavalinho Azul, Cissa de Oliveira, campeando no sonho, cria um símbolo, gesta uma metáfora de felicidade para traduzir na imagem das figuras o sentido humano da vida.

A par de O Cavalinho Azul, chega-me às mãos, também publicado no ano findo, o romance Maison Delliz, assinado por Carmen Pimentel. Livro de excelente produção gráfica, traz, já na contra capa revelada, a força expressiva da autora muito bem ressaltada no excelente sumário crítico subscrito por Regina Márcia Moura Tavares, que com sua reconhecida acuidade crítica penetra no âmago da obra assim expondo: — “A vida é engraçada, por vezes nos testa de maneira brutal, nos castiga impiedosamente, mas é linda”. Carmen Pimentel resume nesta frase o seu profundo, corajoso e ao mesmo tempo, complacente olhar sobre o existir humano. Um mundo de mudanças rápidas e imperativas não nos permite manter comportamentos regidos por valores de épocas anteriores, mas exige-nos recomeçar sempre. Com excelente caracterização psicológica dos personagens, perfeita adequação das falas aos tipos sociais, bom ritmo e certo suspense, ela constrói uma estória familiar que, com seus acertos e desacertos, poderia ser a de qualquer um de nós”.

Eis aí a definição vigorosa de uma obra destinada a ter plena aceitação como retrato de uma sociedade em ebulição em que se agitam anseios escondidos, emoções que explodem, desesperam, expungem velhos conceitos, criam novos valores e tornam normal o que antes era convencionalmente abominado. É uma radiografia atual da evolução que preside, desde milênios, o ciclo irrefreável da história do homem. Caminho da mudança. Bem que Cícero, há dois mil anos, desalentado ante a transformação de costumes que acometia Roma, já deblaterava no antigo senado: “O tempora, o mores”. Um desabafo, retrato do homem que, ao longo do tempo, atazanando os costumes, liberta o instinto de mudança, rompe as comportas da repressão, espraia-se na correnteza dos instintos e leva de roldão os velhos diques. Vale lembrar que Carmen Pimentel, como romancista, não é uma estreante. No seu currículo aparece também, publicado anos atrás, o Anjo de Mármore. Apenas, entre um e outro existe uma diferença de perquirição. Enquanto no primeiro, aparentemente um auto-retrato, persegue o ser em sua intimidade, no segundo, Maison Delliz, faz a radiografia das tendências de uma sociedade em mutação.


Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras. E-mail: costa.rubem@uol.com.br
Correio Popular (Campinas)de 02.04.2009