domingo, 25 de março de 2012

O drama das filas

Cissa de Oliveira




Às dezoito horas e quarenta minutos, aproximadamente, os carros formavam fila em frente ao portão do condomínio. Os que já haviam passado por situação parecida no dia anterior perdiam a paciência, buzinavam, falavam sozinhos, tentavam adivinhar coisas através do vidro fumê da guarita do prédio. Por que o portão não se abria? Acionavam o controle remoto e nada. Por que o porteiro não liberava a abertura do portão? Passados cinco, seis minutos, os carros começaram a entopir o quarteirão em frente ao prédio. O quarteirão seguinte já começava a ter o trânsito prejudicado. Mesmo sendo proibido estacionar por ali, muitos o fizeram, aumentando ainda mais o drama e o buzinatório. Uma outra fila se formou então, a de moradores tentando entrar pelo portão de pedestres, porque nem este estava sendo liberado.

Alguem telefonou para casa, que descessem para ver o que se passava, talvez abrir o portão lateral, saber se um ou os dois porteiros tinham morrido? O vigia tinha faltado, soube-se, e um dos porteiros tinha saído mais cedo, mas e o outro? Desceu um morador para verificar. Encontrou-o na área da piscina, os cotovelos amparados na grade que separa aquela área da área da churrasqueira. Pensava? Mesmava? Qualquer coisas assim era o que o carregava bem pra lá da realidade porque aparentemente viajava ao sabor do vento frio que fazia a água da piscina tremer.

- Seu Henrique? Calado estava, absorto continuou. O morador se prontificou a ajudá-lo mas o homem apenas estendeu a mão, entregando um punhado de controles, chaves, telefone celular, todos num monte de penduricalhos. O morador saiu em direção à portaria e em poucos minutos a entrada e naquelas alturas também a saída de automóveis mais a de pedestres estavam liberadas.

Ao redor da piscina, o porteiro continuava insondável. Escurecia. Estrelava. Súbito, foi à casa das máquinas, acionou alguma coisa e voltou à antiga posição. Contaria até dez. Sim, mais ou menos dez segundos; este era o tempo que ele dava à Vitória, para que ela surgisse em frente a ele pedindo pra voltar. “A fila anda, adeus”, ela dissera antes de partir. Por mais que àquela altura ela já estivesse nos fundilhos do mapa, mais exatamente no Crato, lá nos cafundós do Ceará, esse era o tempo que ele dava à ex-mulher.

No décimo primeiro ele se jogou na água. Por volta do décimo terceiro se deixou tragar pela desilusão, ao mesmo tempo em que os moradores o incriminavam pelo andamento das filas.

Cissa de Oliveira

sábado, 10 de março de 2012

Gavião sem asas

Cissa de Oliveira



Alegria de peão de rodeio é Maria Breteira, beber cerveja, fama, chapéu, calça de couro, bota, colete e esse mundão de meu Deus. Dinheiro? Peão não ta nem aí pro dinheiro, quer dizer: pra emprego fixo! Esses eram os argumentos antigos da Ângela, minha mulher. Ainda assim ela mantinha a serenidade.

O meu sonho maior era ir pro Texas, ela sabia, mas isso foi só até a notícia que recebi em Barretos. Naquela véspera de rodeio, do nada, se materializou na minha frente o meu cunhado Paulo. Nem sei como me achou entre o amontoado de peão acampado na arena. Só não digo que passei vergonha porque ali quem não tinha passado igual, é porque tinha provado do pior. Ao menos eu estava desacompanhado, né? Humilhar a minha Ângela com uma notícia vergonhosa seria mais doloroso do que cair do lombo de boi bandido.

Vergonha quem passou foi o Vanderlei, professor de Odontologia que se bandeava pros rodeios pra namorar os peões. Até peão de vitrine esse aí pegava. Pegava e pagava. À distância pouca, lá estava ele, redobrado em chamegos com um peãozinho desconhecido. Simples, me explico, quem veio com o meu cunhado era ninguém mais ninguém menos do que um parente do professor. Aquilo não ia dar certo. Mas deixei a vida deles pra lá. O que me preocupava era a visita inesperada.

Morreu o teu filho Lucas. Armei um soco bem no meio da cara do Paulo, que se esquivou no ato. Agarrei nos colarinhos dele, gritando, xingando. Não tinha o que fazer? Aquilo era coisa da Ângela, pra me assustar, não era? Pela cara dele, olhos de quem espera o outro despertar, eu me dei conta da verdade. O meu Lucas? Como tinha sido aquilo? Eu ia questionando enquanto recolhia as minhas tralhas.

Pulou da laje da frente da casa, com uma capa de super herói feita com a bandeira do teu time do coração. Criança pequena acredita nos pensamentos. Tentava me consolar. Ele foi levado ainda com vida para o hospital, enrolado na bandeira. Não resistiu. Eu gritava, quase exigia mais detalhes, como se esses pudessem trazer o meu caçula de volta. Se ao menos eu estivesse lá; eu deveria estar lá! A bandeira do meu time eu guardava dobrada, na gaveta das meias. Quando ia imaginar que um menino de quatro anos prestava atenção nessas coisas?

Desde o dia do enterro do Lucas a minha mulher passou da serenidade à tristeza profunda. Eu deixei de lado as ilusões com os rodeios, me desencantei com as alegrias do futebol, especialmente com aquele time, e arranjei emprego fixo. A bandeira do Corinthians? Gavião sem asas, mandei queimar.

Cissa de Oliveira

domingo, 4 de março de 2012

O fim do mundo

Cissa de Oliveira



Duas certezas Kelvin da Silva carregava consigo: uma a de ter sempre feito tudo conforme mandava a sua consciência, e a outra, a de que ainda era mês de agosto. Os jornais, até mesmo os menos sensacionalistas é que não davam sossego. Dos ralés aos mais gabaritados: O que mudava era tão só o tom da reportagem. “Agora é certo: O mundo vai se acabar no dia 21 de dezembro de 2012”; e prosseguia com recomendações diversas, que iam de como esticar o tempo, a transar com pessoas improváveis. Outras reportagens mostravam elegância, e até se aventuravam pela área filosófica: “O mundo vai mesmo acabar?” Pense bem antes de arriscar essa resposta, afinal milhares de ciclos se encerram a cada dia. E se encerram para que outros se iniciem.

Que papagaiada! Pra vender jornal só falta anunciar que cobra pensa. Não leria mais, trocaria de canal ao perceber que o tema fosse esse, e quando a conversa tratasse do fim do mundo concordaria com qualquer coisa, até porque a decisão dele já estava tomada: viveria intensamente tudo o que tem direito até o dia 21 de dezembro de 2012. Pra começar, viajaria pra conhecer o mundo antes que ele se acabasse.

Kelvin fez uma rápida contagem dos dias que restavam até a fatídica data. À noite, anunciou à mulher que eles viajariam o quanto antes, sem data para retorno. Por onde ela gostaria de começar? Dona Nilza estranhou, talvez o marido tivesse bebido umas a mais; desconversou. Ele insistiu. Pra isso tinha largado o emprego, vendido um imóvel, retirado economias de toda uma vida profissional. Só não apanhou ali mesmo porque a mulher teve certeza de que ele era um caso perdido. Pensou em telefonar ao médico; talvez a um psiquiatra. Tomaria essa providênca na manhã seguinte, sem falta, e que ele tratasse de ir dormir noutro quarto!

Naquela noite ele aproveitou para não dormir. Dormir era deixar de viver, tinha compreendido. Saiu em direção ao aeroporto bem antes do sol. Só não contava com o congestionamento encontrado; se ao menos tivesse assistido as últimas noticias... Gente querendo partir, muita gente; outros, também muitos, chegando. Se metade da população do planeta tivesse a mesma idéia, o fim do mundo capaz que ocorresse antes do previsto. Não, não havia mais vôos disponíveis e por isso ele se alojou por ali, nas poltronas dos saguões, entre a multidão descontrolada.

Dona Nilza deu pela falta do marido. Voltou ao quarto, iria dormir mais uma hora e meia pelo menos. Virou o travesseiro. Ah, como era bom o frescor do outro lado do travesseiro! No café da manhã foi que comunicou aos filhos, todos já adultos, que o pai tinha viajado. Pra onde? Tinha viajado pra se desestressar, talvez voltasse em duas semanas. Nos dias seguintes inventava que ele tinha telefonado, que estava na Itália; dali tinha voado para a África, depois voltado à Europa, enfim, resolveu entrar em férias prolongadas. Estranhavam pois era notório os congestionados nas ruas, nos aeroportos, mas com o corre-corre próprio da vida de cada um, ninguém mais falou nisso, ao menos não com preocupação.

Sem o marido, e sem a perspectiva de quando ele voltaria, dona Nilza fez uma descoberta: na vida existiam coisas incríveis como se esquecer das preocupações por várias horas numa espreguiçadeira; não pensar em nada por milésimos de segundos; de repente ouvir a música predileta no rádio; tirar o sapato apertado; achar o dinheiro que ela mesma tinha esquecido nos bolsos; receber um telefonema de alguém de quem ela gostava muito; chegar em casa depois de um dia muito quente lá fora; ter gestos de solaridariedade e se sentir muito bem com isso; beber água fresquinha quando estava com muita sede; dançar com inexplicável felicidade; observar as andorinhas bebericando a água da piscina; acordar achando que era segunda-feira, quando na verdade era domingo; ficar tocada pela beleza de uma obra de arte; descobrir que voltou a entrar naquele vestido maravilhoso; fazer uma receita nova e ter um ótimo resultado. A lista era mesmo infinda e a vida, linda. Não entendia como não tivera espaço para essa sensibilidade antes.

Vinte e três horas e quarenta e nove minutos do dia 21 de dezembro. Kelvin tentava silenciar os dentes, que na hora do medo eles tinham vontade própria. Coisinhas teimosas! Ia morrer passivamente? Não. Por isso é que estava em frente ao Palácio de Westminster. Olhava para o Big Ben como se encarasse a morte on time. Achou que a torre do relógio parecia muito, muito inclinada. As imagens começaram a dançar, as luzes se misturavam com o chão, o ponteiro ia e voltava – adiamento do fim do mundo? - a paisagem se retorcia. O coração dele disparou, sentiu as pernas bambas, ia caindo, pensou ter ouvido estrondos. Deviam ser as explosões do fim do mundo.

Um mal repentino explodiu o coração de Kelvin, enquanto os estrondos, na verdade badaladas do sino, anunciavam o início do dia 22 de dezembro de 2012. O mundo não tinha acabado, quer dizer, não para o resto da humanidade.

sábado, 3 de março de 2012

Bem pra la de Acolá

Cissa de Oliveira



Acolá, mas podia ser Cotó, Taqui, Abaé, Gavé, Zunin. Que importa o nome de uma cidadezinha que cabe gente, tempo, demora?

As meninas rezavam o terço, entendiam de café, carne, farinha, criação, e ainda inventavam brincadeira de assombração. Ah, tempo bom, andorinha que passa do seu jeito, sem que ninguém lhe ponha reparo ao bater das asas.

Silvinha logo se engraçou dos moços, e de se engraçar, engraçou-se por Manuel Antonio Ferreira Gusmão de Araújo Jacobino – futuro Mané Jucá, aquele que chegou de mudança com a familia, todos com o mesmo caminhão de sobrenomes. Calado. Distante. Cismava? Seria poeta, anunciava a quantos pudesse. Arrr, e essa agora? E poesia é lá coisa de homem m-a ma c-h-o cho macho? Poeta nasce poeta e pronto mas a pressão faz as suas transformações e lá se veio um Mané Jucá emendado, remendado, desamarrado de tudo, solto nas palavras, um cão com as sete pedras prontas para serem disparadas. Peitava bobagens, amarrava o ar, a água, raivava. Se pensar, pensava? Só se feito minhoca, que ninguém já não lhe podia entender o meandro das idéias. Mané Jucá? Mané Jucá mesmava! Mesmava em qualquer lugar, até mesmo na bodega de Acolá.

Entardeceu, e de entardecer, desentardecia. Um a um os outros tinham ido pra casa. Vão! seus carneirinhos de patroa! Receio de Silvinha do Terço, ele, Mané Jucá, ia ter? Ela que se contentasse, que ele era ele, dono do direito de ir ou não. Só tomou rumo quando a bodega fechou.

Os passos pela altura do chão, os olhos rolando entre a estrelaria miudinha, lá em cima, esparramada, esparramada...! e as ruazinhas esvaziadas. Até mesmo em frente à casa da velha Lucinha silenciava. Cadê cadeira? E piar de passarinho? Se benzeu sem nem saber. Súbito, milésimos de um raio de sol visitou o pé direito dele. No esquerdo, um raio de luar. Pressentiu. Que diabo era aquilo? E de não haver tempo pra pensar, o poeta decidiu antes do homem. Impulsionou o pé esquedo e se foi, poetisar, bem pra lá de Acolá.

Cissa de Oliveira