quinta-feira, 2 de junho de 2011

Romancistas de Campinas

Após uma pequena cirurgia,ando em franca recuperação. Aproveitei para desempoeirar umas coisas, arrumar outras, e até mesmo reencontrar algumas muito importantes. Assim, publico aqui, escritos a mim dedicados por amigos queridos; é uma forma de agradecer novamente, registrar e até mesmo guardar.

Abaixo, um comentário do escritor campineiro Rubem Costa, da Academia Campinense de Letras, publicado no jornal Correio Popular, em 2009.

Cissa de Oliveira

Romancistas de Campinas

Rubem Costa
costa.rubem@uol.com.br

Cissa de Oliveira é pseudônimo literário da bióloga Maria Sileuda Moreira de Oliveira, doutora em genética e biologia molecular que, de quando em quando, escapa da vereda pragmática da ciência para descortinar no abstrato de seu mundo encantado a paisagem onírica da vida.

Para contemplar a essência desse universo de sonhos, basta ler o programa de livros que tem atualmente em preparo: A Música do Mar, Acordando as Palavras, Versos que eu Pensei e Se Há Chuva ou se Faz Sol. Todavia, não é dos títulos arregimentados que pretendo me ocupar hoje, mas tão somente da publicação recente que me chega às mãos: O Cavalinho Azul.
Um livro que, a começar da apresentação gráfica, traz em si mesmo enraizada uma mensagem dialética, a força da contradição entre o material e o espiritual. Eis que, lançado em formato eletrônico, dispondo apenas de quarenta e uma páginas, aparentemente é um livro de pequeno porte. Em número de folhas, magrinho. E aí se consuma o conflito, porque longe de ser um mero livrinho, revela nas reduzidas folhas uma grande obra que, podendo ser leitura para criança, se destina à reflexão do homem, como a própria autora põe em relevo na dedicatória — “Para todas as crianças e também para os adultos que não perderam a capacidade de sonhar”.

Como se vê, um desiderato que se inscreve na mesma linha de O Pequeno Príncipe, mas, todavia não o imita, não repete, nem induz a confusão com a saga de Saint-Exupery. Tem rota própria. Nele se projeta o ser multifacetário em sua manifestação onírica, buscando retirar do vazio o sentido vivencial do existir. Uma busca que faz lembrar a máxima de Lavoisier que — acertando quando disse que da natureza nada se perde, tudo se transforma — errou ao afirmar que nada se cria. Cria-se, sim senhores, tira-se do nada porque há um momento em que a mente, parodiando o Gênesis, copia a Deus: cria o poeta na concepção do belo, criam os músicos e todos artistas quando buscam na realidade dos sonhos a essência do existir. Podem não plantar materialmente uma árvore, porém conseguem dela a percepção da eternidade e são capazes de traduzir pela captação do mistério — na luminosidade que o sol projeta e no claro e escuro que a lua abençoa — a beleza escondida que nossos olhos não enxergam e pela qual, nós outros, os botocudos, passamos indiferentes sem perceber a grandeza da concepção. Assim, diante do verbo criar é necessário ter em conta a semântica do termo. De origem latina, significa originariamente concretizar, tirar do nada. É a manifestação da essência em forma de existência. Só viceja na seara dos privilegiados que percebem, veem e escutam, tracejando imagens, combinando cores, sons e ideias para despertar uma realidade que, imperceptível ao comum dos homens, preexiste na consciência e se projeta para a eternidade.

Em Cavalinho Azul, Cissa de Oliveira, campeando no sonho, cria um símbolo, gesta uma metáfora de felicidade para traduzir na imagem das figuras o sentido humano da vida.

A par de O Cavalinho Azul, chega-me às mãos, também publicado no ano findo, o romance Maison Delliz, assinado por Carmen Pimentel. Livro de excelente produção gráfica, traz, já na contra capa revelada, a força expressiva da autora muito bem ressaltada no excelente sumário crítico subscrito por Regina Márcia Moura Tavares, que com sua reconhecida acuidade crítica penetra no âmago da obra assim expondo: — “A vida é engraçada, por vezes nos testa de maneira brutal, nos castiga impiedosamente, mas é linda”. Carmen Pimentel resume nesta frase o seu profundo, corajoso e ao mesmo tempo, complacente olhar sobre o existir humano. Um mundo de mudanças rápidas e imperativas não nos permite manter comportamentos regidos por valores de épocas anteriores, mas exige-nos recomeçar sempre. Com excelente caracterização psicológica dos personagens, perfeita adequação das falas aos tipos sociais, bom ritmo e certo suspense, ela constrói uma estória familiar que, com seus acertos e desacertos, poderia ser a de qualquer um de nós”.

Eis aí a definição vigorosa de uma obra destinada a ter plena aceitação como retrato de uma sociedade em ebulição em que se agitam anseios escondidos, emoções que explodem, desesperam, expungem velhos conceitos, criam novos valores e tornam normal o que antes era convencionalmente abominado. É uma radiografia atual da evolução que preside, desde milênios, o ciclo irrefreável da história do homem. Caminho da mudança. Bem que Cícero, há dois mil anos, desalentado ante a transformação de costumes que acometia Roma, já deblaterava no antigo senado: “O tempora, o mores”. Um desabafo, retrato do homem que, ao longo do tempo, atazanando os costumes, liberta o instinto de mudança, rompe as comportas da repressão, espraia-se na correnteza dos instintos e leva de roldão os velhos diques. Vale lembrar que Carmen Pimentel, como romancista, não é uma estreante. No seu currículo aparece também, publicado anos atrás, o Anjo de Mármore. Apenas, entre um e outro existe uma diferença de perquirição. Enquanto no primeiro, aparentemente um auto-retrato, persegue o ser em sua intimidade, no segundo, Maison Delliz, faz a radiografia das tendências de uma sociedade em mutação.


Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras. E-mail: costa.rubem@uol.com.br
Correio Popular (Campinas)de 02.04.2009

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