sábado, 5 de março de 2011

CAÍRAM AS FLORES

Um presente do sempre querido JAG.



para a Cissa de Oliveira

caíram as flores do muro verde
e os amigos parecem-me mais distantes
esbatidos nas sombras suicidas dos crepúsculos
no lugar onde os pássaros desaparecem
no final das suas migrações instintivas

a rua mudou com novas cores o sol
cobrindo as pedras vocacionadas para a cinza
do vulcão extinto os troncos das árvores húmidas
ainda banhadas pelo orvalho da primavera as telhas
vermelhas do casario amando as encostas dos montes
e os brancos das toalhas e dos lençóis a corar
nas tardes de todos os dias

alguém anotou com rabiscos rápidos na alma
como algo mudou com a queda das flores
no muro verde da ilha

eu desligo-me de tudo vou para o miradouro
e fico horas olhando para os barcos partindo em fila
ignorando o destino de quem fica a ânsia de seguir
dentro do seu tejadilho no calor das caldeiras
do tempo em que se chamavam vapores
e lembro
como eram tantos os homens e mulheres que iam
de olhar baixo e lenço acenando para o cais
convencidos de que zarpavam em janeiro
para regressarem num dezembro
que era o amanhã do nunca mais

é verdade
alguma coisa mudou na ilha
e só ontem dei por isso
o muro está diferente
com a queda das flores
os barcos já não são vapores
os emigrantes desistiram da viagem
e eu fico por aqui no miradouro
como se fosse outro no centro
do feitiço duradouro e insistente
que habita esta paisagem

Poema publicado em "Poesia dos Calendários"
José António Gonçalves (1954-2005).

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