terça-feira, 22 de março de 2011

O Gato

José António Gonçalves


O meu amor deu-me um gato,
para me ajudar a vigiar a casa.
Mas acabei por descobrir
que era a mim que o gato
vigiava.



Nos seus olhos havia tempo,
um modo lento de me contemplar;
eu já não sabia se era ele quem vigiava
ou se era eu a vigiar.

As suas orelhas logo denunciavam
o mais pequeno e oculto movimento;
não sei, sinceramente, o que fixava:
se um velho bailado de sombras
ou o meu próprio pensamento.

O meu amor deu-me um gato,
para me fazer companhia.
Apesar de me sentir vigiado,
nunca soube, deveras, o que fazer
sempre que ele desaparecia
e me deixava, sozinho, ao anoitecer,
depois de dormir todo o dia.

De uma vez experimentei chamá-lo,
do beiral da minha penumbrenta janela.
E ele não respondia. Estava com ela,
contando cada pormenor do que via,
no silêncio dos meus aposentos.

E o pior de tudo é quando,
nessas misteriosas visitas, lhe revela
os segredos, os tesouros que escondo,
no profundo breu dos meus pensamentos.

José António Gonçalves (13.06.54 - 29.03.2005), natural de S. Martinho, Funchal, na Ilha da Madeira. Fundou e dirigiu várias colecções literárias, com realce para o Movimento «ILHA», com quatro espicilégios editados (1975, 1979, 1991 e 1994, CMF, onde revelou cerca de uma vintena de novos autores madeirenses), os «Cadernos Ilha» (doze números publicados desde 1988), «Prosas da Ilha» (dois números), «A Memória das Palavras» (dois números: «Única», de Dórdio de Guimarães e «A Ilha de Circe», de Natália Correia»), «Livros de Cordel» (dez números, CMF, incluindo poetas da ilha e do Continente português, com realce para Ernesto Rodrigues, Vergílio Alberto Vieira, João Rui de Sousa, José Viale Moutinho, David Pinto Correia e António Ramos Rosa) e criou outra, «Terra à Vista», na Editora Regionalista da Madeira «Arguim» (cinco números, incluindo Francisco Fernandes, São Moniz Gouveia e Lília Mata). Passou a publicar na internet, incentivado pelo filho Marco Gonçalves. E foi nesse espaço que ele lançou em 2004 o "Poesia dos Calendários", onde publicava, diariamente, diversos autores, famosos ou não, novos e antigos - o único pré requisito é que se tratasse de bons escritores.

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