terça-feira, 31 de maio de 2011

A seita do fim

Cristina Pires


Para a Cissa de Oliveira
 
 
        Há coisas na vida, que pouco me preocupam. Se o meteorologista anunciou chuva, e o sol radiou, por exemplo. Para quê atardar-se em detalhes? O homem errou, e pronto. Afinal, o erro é da natureza... humana.

        Mas há outras coisas, talvez insignificantes para uns, que me tiram o sono. A noite de quarta, passei-a em branco, andando de um lado para outro, transformando a minha sala numa fidedigna Sala dos Passos Perdidos, a ponto de cavar um fosso entre o princípio e o fim. E era aí que residia a insónica questão: no fosso entre o princípio e o fim. Se ao menos esse peso me fosse para as pálpebras... Mas não! Pesava-me nas entrevistas, martelava-me as origens, tolhia-me as bases. Era uma marginal, era o que era! Sem regra e sem lei.

        Nas idas, ouvia a Cissa dizer-me que achava interessante o facto de alguém começar pelo final; nas vindas que lhe parecia prático mas bem difícil, porque o final  é o tchan podendo num único verso, inclusive, negar tudo o que se acabou de ler!

        Negar, negar, negar...

        E o caso piorou! Veio o Machado, e diz-me, como quem não quer a coisa, com as suas várias histórias: "limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar...". Então, eu nego mas afirmo, finalizo para principiar, alvo o princípio. Em resumo, asserto-me!

        Entre as minhas idas e vindas, já com o fosso pelos tornozelos e os ombros pelos joelhos, descaio diante de Jorge Luis e afundo as minhas andanças até à seita do Fénix, ao segredo dos seguidores do Fénix, aos sectários...

        O rito constitui o Segredo, diz-me ele. Este transmite-se de geração em geração, mas o uso não quer que as mães o ensinem aos filhos, nem tão-pouco os sacerdotes; a iniciação no mistério é tarefa dos individuos mais reles. Um escravo, um leproso, um mendigo, passam por mistagogos.

        Escrava morfética da esmola da noite; mestra dos mistérios, dos segredos...

O facto em si, é trivial. Não existem templos, nem orações, nem celebrações deste meu ritual. Mas, um quarto escuro, uma cave, ou umas ruínas, são-me, são-lhe, lugares propícios. Também não existem livros sagrados, onde figure, entre linhas obscuras, um significado decente. Também não há palavras que o definam, apesar de todas as palavras o aludirem. Tudo fica na clandestinidade leprosa. E o princípio pelo fim, ficará no fosso dos meus conceitos. Em mim, por exemplo, isso já é instintivo...
  
Cristina Pires

Cristina Pires é portuguesa, natural da margem esquerda do Tejo, e atualmente vive na margem esquerda do lago Léman, Genebra. Escreve pelo prazer de ver o tempo passar. Participou de antologias no Grupo Ateneu Poesias e publicou contos, crônicas e poemas em vários sites. Diz que "vive a pensar" que poderá retirar as palavras da solidão de uma morte lenta, e arrelia as lápides das palavras extintas, velhas e esfalfadas.

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