sexta-feira, 17 de junho de 2011

Na cauda da mula-sem-cabeça


Claudia Villela de Andrade

O colégio, onde eu estudava, tinha um enorme corredor lustrado de vermelho.

Agora o vejo pequeno. O tamanho das coisas se apresenta conforme o nosso próprio tamanho. Aquele corredor do medo, hoje não é nada. Apenas repousa no canto da minha cabeça curtida já com esse tipo de trauma.

Quando pequena, ele era importantíssimo. Ali, eu ficava em pé de castigo, esperando a diretora para a bronca final. A maioria das vezes, sem justa causa. Ele, então, se tornava o objeto da minha tortura, porque nunca ninguém era tão injustiçada quanto uma criança levada.

Ali, de pé, minhas mãos esfregavam-se uma na outra numa eterna aflição. As idéias e os pensamentos tinham que ser rápidos nas desculpas esfarrapadas.

Quando a marcação do passo de salto alto se iniciava no final do corredor, o suor começava a escorrer e o arrepio da barriga era inevitável. Fechava os olhos, respirava fundo, engolia saliva até a boca secar de vez. E, então, ele parava na minha frente e o carrasco descarregava seu chicote de palavras moralistas, sem amor. A cada chibatada, apertava a língua para não ser mal educada e piorar minha situação.Se o aperto dos lábios era assim, o da alma era pior. Fogo e sangue encurralados no cuspe da infância.

Diacho de corredor do inferno! Ouvia o capeta rindo de mim. Era o corredor da morte. O que me carregava no lombo da mula-sem-cabeça e em cuja cauda havia uma enorme Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. Será que ela me ouvia?

O pior ainda não era isso. O terrível era quando os passos eram largos, barulhentos, rápidos e ríspidos. Os passos da minha tia que também era freira no colégio e que muitas vezes passava por ali. Eram dois chicotes descarregados de uma vez só, o da mestra e o da tia, sendo que o desta última estalava também um beliscão (tudo entre os dentes).

Assim era o encontro da minha alma com a máquina que moía a minha carne, pois dali ela saía para o telefone e, em casa, o couro cantava de novo.

Às vezes acho que, à noite quando durmo, minh’alma vagueia por esses corredores em que vivi. Sempre passo novamente por um mesmo lugar, agora com mais serenidade e maturidade para entender os quadros pendurados nas paredes e as pegadas deixadas no chão. Sinto, então, vontade de rir de situações vividas, de frases ditas ou pensadas, de pessoas a quem a gente esquece e lembra só na hora certa da memória.

Corredores são de mão dupla. Vão e voltam. Como a gente.

Este conto faz parte do livro "Prosas do Ninho" (Ed. muiraquitã, 2008), vencedor do Prêmios Literários Cidade de Manaus, edição 2007, na categoria Livro de Memórias.


Cláudia Helena Caldas Villela de Andrade é carioca, nascida em outubro de 1956, professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o 70º lugar pela Academia Brasileira de Letras co Concurso de redação para Professores de 2001, entre 6032 textos inscritos, fazendo parte da coletânea: Devemos ver com olhos livres (frase de Oswald de Andrade). Fundou o Grupo Virtual Pax Poesis encantada, e publicou dois e-books na internet, um deles de literatura infantil Brincadeira de Gente Grande. Organizou e participou da antologia poética do grupo DiVersos (Ed Scortecci, 2002), e da antologia de prosas Com licença da palavra (Ed Scortecci, 2003). Publicou Prosas do Ninho (Manaus, d Muiraquitã, 2008), vencedor do II Prêmios Cidade de Manaus, edição 2007, na categoria “Livro de Memórias”.
Além disso, Claudinha é uma grande amiga; e por mais que ainda não nos conheçamos pessoalmente, depois de mais de dez anos convivendo no grupo Pax Poesis Encantada, uma família literária, é como se nos víssemos desde sempre.

2 comentários:

  1. Obrigada querida Cissa!!!! É ótimo estar aqui no seu blog!!!!!! bjs claudinha

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  2. Claudinha também é minha amiga, embora não estejamos convivendo ultimamente, desde que acabei com o "Trem das Onze". É uma escritora talentosa que soube desenvolver o seu talento.
    Narra com tal precissão, que nos sentimos inseridos nas situações descritas. Muita gente fala em infância feliz, mas não acredito nisso,
    pois na mente infantil os problemas, por pequenos que sejam, assumem uma proporção absurdamente grande.
    Ana Suzuki

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